Não tanto por ter completado a sua formação profissional à margem da velha Academia, de que foi aluno em 1883, pelo espaço de apenas um mês e dias, senão pela força do próprio temperamento, Parreiras foi, no seu tempo e na sua geração, uma das expressões mais singulares das nossas artes plásticas.

Os primeiros "estudos" não revelavam absolutamente, o gigantesco potencial de energias adormecidas por detrás daquele "realismo" ingênuo, em que o betume da Judéia entenebrecia, convenientemente, as clareiras no seio das matas ou amaciava as arestas às penedias abrutas do sertão. Era a influência de Grimm, a maneira de Grimm, o "terrível beinschwarz de Grimm". Parreiras, a esse tempo, obedecia, passivamente, ao mestre, tanto mais quanto, embora calçasse botas de sete léguas, era o mais atrasado do grupo. Hipólito Caron, Vasquez, Castagnetto, França Júnior já iam longe.

Também por isso mesmo, ninguém mais assíduo às aulas, chovesse ou fizesse sol. O professor, quando o via na grimpa dos morros, curvado sobre o cavalete, costumava dizer para os outros alunos na sua meia língua: "O Prraias Grrandes - chamáva-o assim - bazarrá todos!". E 'Praia Grande' efetivamente, passou todos. Deixou para trás o próprio mestre.

Dissolvido grupo, Parreiras fez-se autodidata. Grimm, antes de regressar definitivamente à Europa, para acabar na Itália os seus dias, apareceu-lhe, certa manhã, no "atelier". Examinou-lhe, com interesse, os trabalhos. Louvou-lhe, com entusiasmo, os progressos. Vaticinou-lhe, com alegria, um grande futuro. E disse-lhe, por fim: "Serás um individual"!

Em 1888, o jovem paisagista realiza um grande sonho: a sua primeira viagem de estudos à Europa. Viaja à sua custa, vencendo obstáculos de toda natureza. Escolhe a Itália e, uma vez na Itália, Veneza. Estava escrito. A mais artificial e feminina das cidades europeias havia de exercer sobre o homem forte das restingas todo o seu fascínio. Veneza é luz, cor e movimento, o que vale dizer para um pintor: a síntese impressionista palpitando na água dos canais, refletindo-se no mármore venerável dos palácios, agitando-se no traje festivo das mulheres do povo.

É quando o imperativo categórico da vocação, sobrepondo-se ao que absorvia do aprendizado realista, começou a reivindicar os seus direitos. No silêncio dos Museus venezianos, Canaletto e Guardi são expressões ainda muito vivas do Século XVIII. Foram eles os precursores da paisagem como se a entende e constrói ainda hoje.

Parreiras coloca o seu cavalete de estudos naquela fronteira ideal, entre o passado e o presente, verdadeira terra de ninguém, onde se cruzam as diretrizes de todas as escolas. Aluno livre da Academia, foi como se continuasse o autodidatismo iniciado no Brasil.

É Ronald de Carvalho quem afirma que "cada homem traz consigo a sua fórmula" e que é preciso conhecer a todos o "direito e o orgulho da sua vontade criadora". O saudoso historiador da arte brasileira não quis, evidentemente, particularizar o caso de Antonio Parreiras. Generalizava. Mas, generalizando, especificava, admiravelmente, essa figura marginal da nossa paisagística que foi o autor de "Sertanejas".

Em 1890, de regresso ao Brasil, expõe no "Salão" desse ano. De seus oito quadros, três, passam a integrar as coleções da Academia: "Turbínio", "Funeral em San Doná" e "Pescadores do Adriático", que foram juntar-se a "Gragoatá e "Tarde", adquiridos, anteriormente, nos anos de 1886 e 1887.

Faz depois uma exposição individual, que dedica à memória de Grimm, cujo túmulo não deixara de visitar em Palermo. Por aqueles dias mesmo, convidado pelo conselheiro Maia, assume a cadeira de paisagem da Academia, vaga desde a morte de Firmino Monteiro. O consórcio do jovem revolucionário com a arte oficial tem repercussão simpática no seio dos remanescentes da "república" da Boa Viagem, pelo que representa como vitória para o velho grupo. Mas, é um consórcio in extremis. Uma das partes contratantes, a Academia, ao apagar das luzes daquele ano agitado de 1890, é reformada nos moldes do projeto Bernardelli-Amoêdo e o jovem revolucionário morde o pó da derrota, aliás, em muito boa companhia: Maximiano Mafra, Vitor Meirelles, Pedro Américo, Bittencourt da Silva, Chaves Pinheiro, J. Medeiros...





Ei-lo face a face com o destino. No ano seguinte, de 1891, empunha o estandarte da Escola do Ar Livre, de combate a arte oficial e avança de triunfo em triunfo, até o dealbar do Século XX. Foram seus alunos nesta época, entre outros, este sempre jovem Manoel Madruga e Alvaro de Cantanheda, que ora preside a Associação dos Artistas Nacionais. Em 1893 realiza a primeira exposição em São Paulo, na verdade a oitava de sua série individual. Em 1895 Campinas, que disputava a São Paulo a coroa e o cetro da cultura bandeirante, acolhe-o, festivamente, em seu seio. O ano seguinte é o ano de "Sertanejas". E, com "Sertanejas" a glória, a consagração definitiva e unânime. Mas, ainda é pouco. O paisagista faz-se agora animalista, pintor de costumes, de história, de nus, da Vida, enfim! Rastrear-lhe a atividade, daí por diante, até o ano de 1937, em que faleceu, não é tarefa que se possa reduzir às proporções de um artigo de revista.

Gilberto Freire disse de Euclides da Cunha que "fora um escritor em função da paisagem brasileira". Parafraseando o ilustre sociólogo, podemos dizer de Parreiras que fora um pintor em função da mesma cousa. A diferença está em que Euclides via o facies trágico, a aridez descolorida das caatingas, a penúria, o sofrimento e a dor, enquanto que o outro via apenas o facies dramático, isto é, o verde eterno das selvas tropicais, a imponência das grandes massas d'água encachoeiradas, os crepúsculos espetaculares....

Quando Parreiras nos dá o espectro de uma árvore morta, levantando os braços hirtos para o céu ou nos abre a perspectiva rasa das planícies sob o flagelo das secas, não é ainda a tragédia euclideana. É apenas uma nota episódica, que não chega a alterar a substância essencialmente dramática das suas telas.

Em 1905, pinta para o edifício que se destinava à sede do Supremo Tribunal Federal, à rua Primeiro de Março, "Os Desterrados". Estranha coincidência: é a primeira página da História do Brasil e é também a sua primeira composição histórica. Daí por diante o druida misterioso das "Sertanejas", cede terreno ao pintor-ensaista, ao pintor humanista e historiógrafo: a conquista do Amazonas, a fundação dos primeiros núcleos populacionais de gente cristã, São Sebastião do Rio de Janeiro, São Paulo, Santo André da Borda do Campo, Niterói; os dramas das bandeiras e da catequese; os movimentos que precederam o Sete de Setembro e muitos dos que a essa data se sucederam são os temas favoritos das suas composições, em mais de trinta anos de atividade ininterrupta.

No intervalo dessas grandes telas, as paisagens e os nus saem da sua palheta como pequenos poemas trabalhados ao sabor dos mais variados estados d'alma. "Trabalhar é viver" foi o lema deste artista, cuja memória se cultua, na casa que ele próprio construiu, com as suas mãos, e que o Governo do Estado do Rio, sábia e patrioticamente, transformou em Museu para edificação dos pósteros.


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Publicado originalmente no Boletim de Belas Artes, em agosto de 1947
Jefferson Ávila Júnior, então Diretor do Museu Antonio Parreiras Sócio Honorário da S.B.B.A.









Publicado em 26/03/2023

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