por Romeu de Seixas Mattos

Uma busca no passado faz-nos rememorar acidentes que existiram – no tempo em que se escrevia o nome da cidade com c-t-h-y (Nictheroy) – e que a evolução urbana, o desmonte de elevações, o aterro de depressões e de terrenos alagados, o traçado de novas ruas, o advento das galerias de águas pluviais, a construção dos edifícios, os novos calçamentos, os novos gredes etc., fizeram desaparecer sem deixar qualquer vestígio.

O cidadão que transita, hoje, no final da Avenida Amaral Peixoto, num trecho da rua Marquês do Paraná, ou visita o Hospital Antônio Pedro, não tem a menor ideia de que por ali passou o litoral que existiu em 1568, a verdadeira Praia Grande, que ali estavam a Galeria de Esgoto do Portela, o “Campo Sujo” e especialmente, o Rio dos Passarinhos, que é o nosso objetivo de hoje.

O desaparecido Rio dos Passarinhos, nos seus primórdios, nascia e se desenvolvia no vale em que depois de aterrado, foi construído o Hospital Antônio Pedro e desaguava num canal que suponho ter existido no local onde se desenvolve a rua Marquês do Paraná e daí atingia o litoral que existiu em 1568.




Quando a Ponta d'Areia evoluiu e ultrapassou a rua de São João, o Morro da Pedreira ou Correição (hoje do Parque das Águas) foi ligado ao continente e assim, a parte do litoral que existiu em 1568 começou a transformar-se no “Campo Sujo”.

Nessa época, o tal canal, que acredito ter existido (baseado nas minhas observações quando tomei parte na construção dos esgotos de Niterói), talvez já estivesse em parte obstruído e então o Rio dos Passarinhos, alagando o Campo Sujo necessitava de escoamento.

Sendo assim, canalizaram essas águas através de uma galeria de seção retangular de grandes dimensões, coberta de grandes lajedos de pedra, que corre num sentido proximamente paralelo à Rua Visconde de Sepetiba (antiga rua da Princesa), entre as duas deflexões à direita de 90º e 45º, mencionadas mais adiante.

No vale onde nascia e se desenvolvia o desaparecido Rio dos Passarinhos, hoje aterrado, existem o Hospital Antônio Pedro, o prédio do Instituto dos Marítimos, a rua Desembargador Ataíde Parreiras (a do Hospital Carlos Tortelly) e outras.

O Rio dos Passarinhos era naturalmente o "talvegue" do vale de sua origem, por ele se desenvolvia naturalmente sinuosamente, atravessava a rua Diamantina (atual Marquês do Paraná mais ou menos em frente ao meio da fachada do Hospital Antônio Pedro, obliquamente, seguia pelo terreno do prédio n° 282 da rua Marquês do Paraná os prédios nos fundos deste, contornava o pé de Morro da Conceição ou Dr. Celestino (hoje parcialmente desaparecido) atravessava transversalmente as ruas Djalma Dutra e Padre Feijó e os terrenos dos prédios construídos de ambos os lados dessas ruas, até atingir a hoje Avenida Amaral Peixoto, por cujo leito seguia serpenteando, até quase chegar à rua da Princesa.

Nesse ponto fazia uma deflexão de 90º à direita, tomando uma direção proximamente paralela à rua da Princesa.




Também nesse ponto, em épocas remotas, devia receber um afluente através de um dreno construído sob o antigo prédio de nº 57 na rua da Princesa (prédio onde nasci em abril de 1892 e onde residiram por longos anos meus avós maternos e meus pais), que escoava as águas da desaparecida fonte citada pelo Desembargador Joaquim José de Queirós, executor do Alvará Régio de 10 de maio de 1819, da criação da Vila Real da Praia Grande.

Assim penso porque os terrenos dos desaparecidos prédios de nºs 57, 59 e 61 da antiga rua da Princesa são hoje ocupados pelo prolongamento do Fórum da cidade e nessa parte nova do edifício, num dos cantos, quando da construção, houve necessidade de um serviço especial de impermeabilização de um “olho d'água” ali existente, talvez remanescente de uma fonte desaparecida, citada pelo Desembargador Dr. Joaquim José de Queirós na justificativa da escolha do local para instalar o pelourinho etc.

Não deve ainda estar esquecido que ampliação do Palácio da Justiça foi feita sobre um jardim, porém abro um parêntese aqui para dizer que anteriormente, bem antes da construção referida, nos terrenos 57, 59 e 61 da antiga rua da Princesa foi construído um prédio único, onde funcionaram o Quartel de Comando Superior da Guarda Nacional e, depois, a 2ª Circunscrição de Recrutamento do Exército.

Partindo do ponto já referido, isto é, onde o Rio dos Passarinhos fazia uma de flexão de 90º à direita, seguia uma direção proximamente paralela à rua da Princesa atravessava o terreno do edifício da Chefatura de Polícia, o terreno dos prédios nºs 226 e 230 da antiga rua Aureliana (hoje Coronel Gomes Machado), a referida rua, o campo do Niteroiense Foot-Ball Club (hoje Edifício Tower 2000), a Travessa da Pedreira (hoje Cadete Xavier Leal), situada no prolongamento da rua de São Pedro, os terrenos dos prédios nº 23 e 27 da Travessa da Pedreira, os terrenos dos prédios nºs 222 e 224 da rua de São João, a rua de São João e os terrenos dos prédios nº 227 e 221 da rua de São João, fazendo nos terrenos desses últimos prédios da rua de São João uma nova deflexão direita, de 45º, para atingir o mangue que durante muitos anos existiu na rua de São João, quando o mar vinha até essa rua e os prédios ai existentes eram considerados terrenos da marinha, pois até ai chegava a desaparecida Enseada de São Lourenço.

Mais tarde, quando a rua do Imperador (hoje Marechal Deodoro) foi prolongada além da rua da Princesa até chegar à antiga rua Diamantina (Marquês do Paraná), deixaram nessa extensão prolongada duas passagens de águas do mar para o mangue, o qual continuou ainda existindo durante muito tempo.

Nessa passagem de águas do mar havia duas grandes pontes de madeira, de modo que o bonde puxado a burros fazia um grande barulho quando as atravessava, não só pela trepidação das pontes, mas também pelas patas dos animais, batendo no tablado das pontes.

Essas pontes tinham um vão de mais ou menos vinte metros cada uma e ficavam em frente aos prédios de nos 315 e 319 (números antigos), prédios que indicavam na fachada a data de sua construção em 1890, sendo que a ponte em frente do nº 319 era maior que a outra. Num desses prédios funcionava, naquela época, uma fábrica de sabão.

Em 1903, quando voltei a residir em Niterói, viajando em bonde de tração animal pela rua Marechal Deodoro (antiga do Imperador) tive oportunidade de assistir à lavagem de vários cavalos no lado do mangue, que ainda existia, pois era costume, antigamente, as cocheiras levarem em grupos os animais para lavá-los no mar ou no mangue.

Esse mangue – entre as ruas do Imperador e São João com o correr dos tempos foi sendo aterrado, em várias partes, principalmente e primeiramente nos caminhos que procuravam fazer para melhor distribuir o aterro.

Em frente ao prédio n° 319 fizeram, primeiro, uma travessa cujo nome era Bogari ou Albergaria e, mais abaixo, a Travessa Floresta, ligando rua do Imperador à de São João.

Croqui publicado em 'O Fluminense' (1973) por Romeu de Seixas Mattos, em sua coluna "A Niterói que eu vi e a que viram meus avós".
Atualmente, no local da Travessa Bogari ou Albergaria existe a rua Cônsul Francisco Cruz e, mais ou menos, no lugar da Travessa Floresta existe a rua Alcides Figueiredo; digo mais ou menos, porque a Travessa Floresta era oblíqua e desembocava na Travessa da Pedreira, ao passo que a atual rua Dr. Alcides Figueiredo é perpendicular e afastou-se da Travessa da Pedreira.

Mais tarde, completado o aterro, foi aberta entre as duas ruas citadas acima a rua Monte Líbano, também entre as ruas Marechal Deodoro e São João, limitada como as outras. Em frente à Casa de Detenção, em tempos idos, ficava o desaparecido "Largo do Chafariz".

Quando em 1912 sanearam o "Campo Sujo" e, com o desmonte do Morro da Conceição, aterraram essa parte onde hoje está o trecho final da Avenida Amaral Peixoto, ruas Djalma Dutra e Padre Feijó, as águas do Rio dos Passarinhos foram desviadas e passaram a correr por uma antiga galeria de esgotos construída no governo Francisco Portela (1889-91).

Essa ligação foi feita no local onde hoje existe o prédio de n° 282 da rua Marquês do Paraná na galeria de esgotos de seção circular com 0.45mm de diâmetro, seguindo paralelamente a rua Marquês do Paraná dentro do alinhamento dos terrenos particulares do lado de numeração par, isso porque o trajeto da antiga rua Diamantina não coincidia perfeitamente com o da atual rua Marquês do Paraná.

A galeria de 0.45cm de diâmetro, por onde estão correndo agora as águas do Rio dos Passarinhos, foi desligada do sistema de esgotos do tempo do Governador Portela, isto é, da galeria de seção oval, que corre pela rua de São João, e foi ligada na galeria de descarga do Reservatório de Águas da Correção, passando subterraneamente pelo terreno da antiga Casa de Carros e Usina da Companhia Cantareira Viação Fluminense (Abrigo dos Bondes).

Com esses trabalhos, as águas do Rio dos Passarinhos hoje não correm mais pelo trecho entre as duas deflexões de 90º e 45º, paralelo a rua da Princesa, mas aquele trecho de seção retangular de grandes dimensões, coberto por grandes lajedos de pedra, que recebe apenas as águas de ralos de águas, assim mesmo continua sendo chamado de "Rio dos Passarinhos" pelos operários da Prefeitura Municipal de Niterói encarregados de sua conservação e desobstrução.

A parte do Rio dos Passarinhos que se desenvolvia dentro do vale de sua origem, hoje totalmente aterrado, está correndo em parte superficialmente pelo leito das ruas traçadas nesse vale e encaminhadas por galerias de águas subterrâneas posteriormente construídas.

Terminando, vou repetir aqui uma história que me foi contada pelo Professor Emilio Dias Filho, de como o referido rio atrasou por dois anos os estudos do Dr. Belarmino Tati, já falecido, advogado no foro de Niterói e filho do tenor e maestro Felice Tati, ligado ao nosso Theatro Municipal:

Num exame final de geografia, certo professor perguntou ao então estudante de preparatórios - Belarmino Tati - o nome de um rio de determinado lugar. O aluno não soube responder e disso o examinador fez um “cavalo de batalha”.

Justificando sua falta de conhecimento, o examinando alegou tratar-se de um rio sem grande importância, mas o professor não aceitou a argumento.

Sendo assim, Belarmino Tati pediu-lhe permissão para fazer-lhe uma pergunta e, obtida, a autorização, indagou-lhe sobre o Rio dos Passarinhos.

Como a examinador ignorava a existência, aluno estranhou, por sua vez, que um professor de geografia, em Niterói, desconhecesse um rio da cidade e, no entanto, exigisse que ele, estudante, soubesse o nome de um rio de lugar aonde nunca tinha ido.

O professor irritou-se, deu parte dele e Belarmino Tati foi suspenso por dois anos, atrasando sua carreira, mas satisfeito consigo mesmo, por haver "desabafado".


Artigo escrito em 31 de março de 1974 em O Fluminense, com comentários de Alexandre Porto


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Publicado em 23/09/2022

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