Por Tizuka Yamasaki, para "O Jornal" - 21 de março de 1973

Ele tem a idade da pintura brasileira. Quando a Semana de Arte de 22 estourou no país, trazendo uma visão brasileira da arte, Quirino Campofiorito tinha 20 anos. A idade que se começa a fazer alguma coisa por exemplo, a pintura. Hoje, em mais de 50 anos dedicados inteiramente no fazer e analisar a arte brasileira, Quirino conseguiu pelo menos duas coisas notáveis: não ficar milionário e não se prender a qualquer corrente, seja ela estética, de geração, ideológica.

No ano passado, as páginas deste "O JORNAL", onde trabalhou desde 1944, estiveram carregadas de críticas fortes ao atual esquema que domina as artes plásticas - da valorização comercial, da falta de critério artístico, da falta de visão não só da parte dos artistas como dos marchands, das galerias, grupos alheios à arte, que dominam com força cada vez maior o mercado artístico brasileiro. Estas críticas partiam de um homem de 70 anos, que conserva no escrever a ironia e a objetividade que faltam à maioria dos jovens que atualmente fazem o que se chama de crítica de arte.

Corrente segura criatividade

Mais importante que a posição diante da análise crítica, irônica e doce do pintor Quirino Campofiorito, talvez seja sua permanente atualidade. Afastado do ensino da Escola Nacional de Belas Artes deste 1969 - aposentado compulsoriamente pelo AI-5 -, no mínimo por ter ideias muito liberais, ele continuou a exercer a crítica em jornais, com o mesmo vigor de sempre. Sua constante atualização e sua formação clássica lhe permite entender a pintura como um processo , nunca preso às correntes, que segundo o próprio Quirino, tanto conduzem a algum caminho determinado, como seguram a criatividade do artista, numa visão semântica e crítica da palavra que fazem a originalidade do pintor como jornalista.

Ainda neste ano, a propósito dos "Objets Introuvables", conhecido também como "Minimal Art", ele põe em questão se pode considerar a arte somente pelo seu efeito. Esta discussão exigiria do leitor uma erudição incomum no nível teórico. Quirino conseguiu colocá-la em termos jornalísticos. E quem conhece o assunto, ficou pelo menos perturbado e preocupado diante do que se chama 'vanguarda'. Isto leva a uma análise, a uma posição mais profunda de seu conceito em relação à arte. "O ceticismo remove montanhas", na frase de Brecht, que se encaixa melhor ainda nas artes plásticas que no teatro, porque nunca tantos acreditaram tanto em tão poucas razões realmente artísticas como ocorre hoje.

Forçosamente um clássico

Uma pequena explicação: Quirino Campofiorito é um pintor que faz crítica. E nunca o crítico que faz pintura. Isto já elimina de vez qualquer especulação a respeito da inevitável comparação de sua visão crítica a respeito do seu trabalho. Ele próprio, se deixa definir na apresentação da exposição como um clássico. Forçosamente o seria. Estudou na Europa de onde veio no ventre de sua mãe espanhola para nascer em Belém do Pará, a 7 de setembro de 1902, onde frequentou ateliers de Pougheon, Charles Blanc, Bataglia e Coromaldi. Nestes anos entre 1929 a 1934, conquistados pelo prêmio de Viagem à Europa, o jovem Quirino viveu e absorveu a cultura europeia, ao lado da pintora Hilda Eisenlohr, com quem se casou. Educou-se nesta cultura, hoje em crise, mas na época, Paris e Roma tinham a força e dinamismo da qual nenhum intelectual tupiniquim poderia escapar.

Foram os anos que reforçaram seu aprendizado acadêmico da Escola Nacional de Belas Artes, adquiridos na década de 20, quando iniciou-se na pintura. Ao retornar ao Brasil, em 1934, já era amigo de Cândido Portinari e companheiro de geração de Teruz, Di Cavalcanti, Tarsila do Amaral, Anita Malfati, enfim, dos que se tornaram mestres da pintura brasileira, aqueles brasileiros que primeiro tentaram uma visão nacional da pintura, antes proibidas pelo academicismo.

Estimular arte brasileira

Ainda no ano passado, quando uma campanha de intenções obscurantistas quis tirar de Portinari o mérito de introduzir o folclore na pintura brasileira, Quirino defendeu o artista. Explicou com objetividade que não foi nem Portinari nem Teruz que lançaram o folclore em nossa pintura. Foi a própria época, os anos que procederam a Semana de Arte Moderna. E esta capacidade de discernimento, de não tomar um outro partido senão o da própria arte, é marcante no pintor.

Nestes anos de 20, este grupo de primeira arte brasileira teve fundamental influência de um pintor estrangeiro, que conviveu com ele durante 5 anos. O personagem chamava-se Fujita, japonês de formação europeia. Desconhecido no Brasil, porém, conceituado na Europa, Fujita dominava uma técnica de pintura a óleo bastante particular. Utilizando-se de verniz, o japonês conseguia através da superfície rala de suas tintas, um brilho todo especial que refletia o espírito oriental através de uma técnica europeia.

Pelo fato de Fujita neste tempo ser hóspede convidado de Portinari, era evidente que este pintor tenha assimilado a técnica do companheiro. Se Portinari, com sua evolução conseguiu superar Teruz, durante quase toda a sua vida artística, empregou a técnica adquirida por Fujita. O interesse despertado nesse oriental, por nossos temas brasileiros, dado o desconhecimento de nossa terra do estrangeiro, foi um dos motivos pela qual os jovens artistas de arte moderna da época se motivaram para descobrir a arte brasileira.

Quirino viveu estes primeiros anos. Mas foi barrado por uma bolsa de estudos na Europa, se afastando por cinco anos. Voltou, encontrou novamente seus amigos. As dificuldades dos anos de 30 para fazer uma exposição, divulgar seus trabalhos, obrigou Quirino a viver de ilustrações, ensino, e jornalismo. O tempo para pesquisa sobre a pintura praticamente deixou de existir. E o tempo para teorizar e se contemporarizar sobre ela, aumentou. E sempre se conservou jovem apesar de seus atuais 70 anos, sem a demagogia muitas vezes comuns nos de sua geração. Sem se promover comercialmente em nenhum momento de sua vida.

Para Quirino, "primeiro o jornalismo, animado pelo propósito de estimular a evolução artística entre nós, e fazer conhecidos os artistas brasileiros, muito particularmente os jovens". Quando Roberto Pontual, totalmente desconhecido, quis fazer o seu Dicionário de Artes Plásticas, Quirino lhe emprestou seu arquivo particular, o mais completo do Brasil, de onde ele tirou pelo menos a metade das informações da obra. E o fez sem qualquer pretensão de aparecer. Somente um ou dois dos amigos mais íntimos sabem disto hoje.

No ano passado, numa reunião de críticos promovida pela "Collectio", Quirino, apesar de o mesmo Pontual estar agora chefiando o departamento de compras desta grande galeria, não deixou de criticar a reunião, a falta de espaço reservada à crítica de artes plásticas na Imprensa Brasileira, a falta de orientação artística das galerias, o mercenarismo de muitos grupos que tentam transformar tendências de opinião (gosto do consumidor) em arte.

Não é retrospectiva




"Esta exposição está longe de ser uma retrospectiva. Um longo panorama, pouco mais de 50 anos de dedicação ao fazer artístico. Mas foi sempre um trabalho em beneficio da arte - que muito nos estimulou o espírito e agora nos deixa com a consciência tranquila. Parece que ainda há algum tempo para finalizar um destino que jamais podemos nem quisemos contrariar. Agora, pensamos, a arte poderá finalmente ser a tarefa predominante. Sempre será tempo para tentar fazer parte do muito que circunstâncias irremovíveis impediram de realizar na medida desejada". Sem jornal e sem sua banca didática na ENBA, Quirino Campoforito, depois de 50 anos de trabalho dedicado em estimular a arte brasileira, desde ontem às 17 horas, teve sua exposição "Sumário Retrospectivo" inaugurada no Museu da Imagem e Som - praça Marechal Arcoverde.

Um Quirino bem temperado. Um Quirino que considera a velhice a pior doença (um comentário seu a respeito de Picasso, que estaria internado em Paris: "não importa que doença se tem a velhice e basta). A simplicidade marcante de sua personalidade, a timidez de não usar as pessoas, de confiar a divulgação de de sua obra a um contato pessoal com os jornais: no seu mesmo terno claro, voz mansa e pausada, sem a preocupação em conceder entrevistas (não deu nenhuma entrevista sobre a retrospectiva), Quirino hoje voltou à dedicação completa à arte pela qual sempre lutou. Livre, sem jornalismo, ilustração ou ensino, mas esperançoso. Quirino, silenciosamente está lá em Niterói. No seu atelier, pintando.

Leia mais em Quirino Campofiorito (1901-1993)

Tizuka Yamasaki é uma diretora de cinema, produtora, roteirista assistente de direção e designer de produção nipo-brasileira

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Publicado em 17/05/2021

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